a vida de rano

raoni periguná ratxatá.

esse era o nome de nascença de rano.

ele tinha consciência que rano era um apelido bem ruim, mas ainda assim era melhor do que raoni periguná ratxatá.

nascido na aldeia mayoruna marubo matis (cujo significado ninguém sabia), rano sempre se achou um peixe fora d’água.

nunca gostou muito de atividades ao ar livre e muito menos de andar descalço pelo mato.

sem falar nessa conversa de ter que ficar pulando feito um grilo alucinado ao redor da fogueira para atrair bons espíritos.
se os espíritos eram bons mesmo, por que ia deixar que acendessem uma fogueira depois da outra?
e as árvores? como ficavam?
e sua pele, que ficava ressecada como um mamão papaia vencido no meio daquele calor todo?

era demais pra ele.

rano sempre sonhou em fugir de mayoruna marubo matis.
mas para onde iria? o que faria?
o único talento que possuía era juntar vários pedaços de pele que serviam para adornar os corpos dos seus colegas índios, mas que não faziam muito sucesso já que a última (e primeira) moda daquele lugar atrasado era andar pelado mesmo.

rano seguia desenhando suas ideias, que chamava de indielook, num caderno que achara rio abaixo e mostrava para seus dois melhores amigos, aruruara e manbonganga, que sempre aceitavam o papel de cobaias das suas maluquices.

um dia, rano acordou com uma ideia na cabeça.

durante semanas trabalhou sem parar, deixando a tribo inteira curiosa sobre o que ele estaria aprontando dessa vez.

então, num sábado à noite, rano convidou a todos da aldeia para comparecer ao

show off da first indielook by ran.0.

mesmo só compreendendo a palavra “sábado”, a tribo inteira compareceu.
afinal de contas, o que mais eles poderiam fazer num sábado à noite no meio da selva amazônica?
ou em qualquer outra noite?

depois que seu staff servisse suco de sequoia selvagem e canapés de favos de mel embebidos em extrato de papoula, ran.0 estava confiante de que todos iriam sauda-lo como um deus grego depois do show off protagonizado por aruruara e manbonganga.

corte seco.

era dia claro e ran.0 estava em pé sobre quatro troncos amarrados frouxamente com cipós no meio do rio ambuburuambu.
andava de um lado para outro se lamentando, tentando imaginar o que poderia ter dado errado no seu show off.

a única coisa certa era que ele estava banido da aldeia.

malditos.

mas eles iam ver. todos eles.

ran.0 então se ajoelhou na balsa improvisada, ergueu as mãos pro céu e gritou:

TE JURO, TUPÃ! TE PROMETO SOB ESSE SOL, SOBRE ESSE RIO, QUE EU VOU SER…

o que ran.0 seria ninguém jamais vai saber.
em seu fervor furioso, não percebeu a cachoeira que se aproximava.

enquanto sua balsa entrava na queda d’água, ran.0 não viu sua vida passando diante dos olhos ou nada disso.

pela primeira vez ran.0 percebeu o que tinha dado de errado no seu show off.

como ele poderia ter esquecido que a sequoia era sagrada para seu povo?

como?

despertar

ele acordou.

isso por si só não era nem um pouco estranho. o que deixou ele irrequieto foi ter acordado de uma hora pra outra, com o coração pulando e uma sensação de pânico.

de repente, como um tapa na cara, a lembrança chegou.

os gritos, o choro, a porta batendo.

sentou-se na cama e tentou controlar o coração que parecia tentar escapar do corpo pela boca. respirou algumas vezes como sua professora de Yoga ensinara, mas não adiantou.

resignado, foi até o banheiro e lavou o rosto. ao se olhar no espelho, levou um susto. suas olheiras transformavam seu rosto já pálido em uma máscara sem vida.

ele encarou o próprio reflexo por um momento, lembrando do choro convulsivo na cama até pegar no sono, exausto.

sentiu as lágrimas surgindo novamente, mas se controlou.

– a vida é assim mesmo. só ama de verdade quem não tem medo de sofrer.

repetiu a frase mais duas vezes. como dissera sua professora de Yoga, três é um número cabalístico e que canaliza boas vibrações.

já fazia 15 minutos que ele estava parado na entrada do seu apartamento. podia imaginar seu chefe olhando para sua mesa vazia, mas não se importava. ela estava lá.

aquela que falou que não queria o ver nem pintado de ouro.

aquela que jurou nunca mais trocar uma palavra com ele.

aquela que falou mal da sua samambaia de estimação.

ele podia sentir as lágrimas voltando mais uma vez. a mão tremia levemente.

 

 

ela acordou de repente, suada e com lágrimas nos olhos. automaticamente, tentou enroscar seus pés nos dele, mas não havia ninguém lá.

então ela lembrou.

dos gritos, do choro, de bater a porta. com força. duas vezes.

ela sentou na cama.

“como foi mesmo que ele disse que a professora de Yoga ensinou?”

não conseguiu lembrar e foi até o banheiro.

assustou-se com as olheiras e procurou seu corretivo. não achou. procurou mais uma vez, dessa vez já com lágrimas nos olhos com medo de que estivesse no último lugar que ela gostaria de estar.

é claro que estava.

gritou.

de raiva.

de tristeza.

de dor.

foi até a geladeira e viu o resto da comida chinesa do fim de semana passado, que foi regado a Woody Allen e Miles Davis.

ela sorriu.

sabia que ele só fingia essa sofisticação para alegrar ela.

se dependesse dele, estariam vendo Superbad ou Nacho Libre. no som? nada. ele não gostava de música alta pela casa. tinha medo de incomodar os vizinhos.

sentiu as lágrimas vindo, mas nada fez para impedir. enquanto ela molhava a camiseta surrada dos Ramones dele, lembrava de como ele mexia no seu lóbulo enquanto falava.

lembrou das risadas, das cócegas, das juras de amor em post-its amarelos.

de repente não lembrava mais do que motivou uma noite de domingo tão horrível.

era alguma coisa sobre a bagunça.

que coisa idiota!

ela ficou com raiva de si mesma por ter se deixado levar pela raiva.

colocou uma calça e saiu.

subiu dois lances de escada e bateu na porta. prendeu a respiração e viu aquele que, há 6 horas, não queria nem ver pintado de ouro.

ela viu as lágrimas nos olhos dele e sentiu uma facada no coração. odiava vê-lo chorando.

a mão dele tremeu.

 

 

ele acordou de repente, num sobressalto.

ao mexer os pés, sorriu e voltou a dormir.

ela acordou de repente, num sobressalto.

ao mexer os pés, sorriu e voltou a dormir.