o sabonete

era uma terça-feira.

uma da tarde.

na academia de ginástica.

terminei a supervalorizada levantação de pesos e fui tomar banho.

a academia disponibiliza, em todos os boxes, suportes com dois compartimentos para as pessoas colocarem seus sabonetes, shampoos e derivados.

ao entrar no box escolhido, observei que havia um sabonete usado descansando despreocupadamente no suporte.

não dei bola e coloquei meus acessórios higiênicos no espaço inferior.

comecei o banho, apliquei o shampoo e iniciei o processo de esfregação.

braços, tronco, pernas e outras partes foram devidamente ensaboadas.

o rosto eu sempre deixo pro final.

ao aproximar o aparato espumante da minha face que foi, um dia, beijada por maitê proença, noto algo diferente em sua cor.

não era a cor do meu sabonete.

em pânico, olho para o suporte e lá estava ele.

o meu sabonete.

com sua cor verde-musgo.

intocado.

desidratado.

em uma posição que dava a entender que ele estava observando a situação com um interesse nefasto.

estaria sorrindo debochadamente, se disso fosse capaz.

imagens começaram a pipocar pelo meu cérebro.

locais por onde aquele corpo estranho poderia ter passado.

por quais trincheiras ele teria rastejado?

que cavidades haveria visitado?

olhei para os lados em desespero sem saber o que fazer e só ouvi o silêncio sarcástico do meu sabonete.

aumentei a potência do chuveiro para o máximo e esfreguei meu corpo com a intensidade de uma motoniveladora.

por sorte, não havia uma lixa industrial por perto, ou então ela teria sido agressivamente utilizada.

quase como uma esfoliação aplicada pelo satanás.

com as mãos trêmulas, devolvi o sabonete invasor ao seu local de origem e apanhei o meu.

ao segurá-lo em minha mão, pensei ter sentido uma vibração, como se ele estivesse rindo.
passei tanto tempo esfregando meu corpo que, ao final, meu sabonete estava do tamanho de um selo.

saí do box cabisbaixo, carregado pela cena de horror que acabara de sofrer.

depois de me vestir, dei uma última olhada para o box e me arrepiei ao fitar o outrora estranho sabonete, que agora era terrivelmente íntimo.

me dirigi à saída e cumprimentei a moça da recepção.

ela me desejou uma boa tarde.

mentalmente, respondi:

– impossível.

luzes

pedro acordou de supetão, num susto engasgado.

no escuro, não conseguia enxergar nada, só o brilho desfocado do reflexo do seu rádio relógio na janela do quarto.

respirou fundo algumas vezes, tentando recuperar o fôlego que nem entendia como tinha ido embora.

olhou pelo vão da porta do quarto e viu a luz do banheiro piscando.

pensou que precisava trocar a lâmpada, apesar de jurar que já tinha feito isso no dia anterior.

não deu importância para a estranheza que a situação causava e esperou o coração voltar a bater no ritmo normal para retornar aos braços de morfeu.

aos poucos, o piscar da luz do banheiro começou a incomodar pedro.

ele virava de um lado para o outro na cama, mas o incômodo foi crescendo cada vez mais, ao ponto de pedro achar que conseguia ouvir os filamentos acendendo e apagando.

sempre no mesmo ritmo…sempre na mesma ordem.

apesar disso, pedro finalmente conseguiu voltar a dormir.

acordou sentindo-se cansado, como se tivesse passado a noite em claro.

sem muito foco, comeu qualquer coisa que encontrou na geladeira, vestiu a mesma roupa do dia anterior e saiu para o trabalho.

estava tão alheio à realidade que nem percebeu a luz da cozinha piscando.

por causa do cansaço, pedro passou o dia numa semi-letargia que seu trabalho como ascensorista em nada ajudava.

apertava os números no automático e só se permitiu sair do transe quando viu que as luzes do painel do elevador piscavam.

pior, piscavam no mesmo ritmo e intensidade que a luz do seu banheiro na noite anterior.

pedro sentiu-se fraco.

chegou ao térreo e pediu para seu colega o substituir porque precisava ir ao banheiro.

lavou o rosto e, enquanto o secava com as toalhas de papel extra-finas que a empresa disponibilizava, ficou se encarando no espelho.

quanto tempo pedro ficou ali, perdido no próprio olhar, ele não fazia ideia.

mas voltou a si quando a luz do banheiro começou a piscar.

pedro saiu ofegante e suado do banheiro. mal conseguiu murmurar a frase problema na barriga para seu chefe – o que deve ter ajudado no convencimento de que pedro realmente precisava ir pra casa.

esperou o ônibus olhando para os lados e torcendo as mãos, nervoso como nunca estivera na vida.

subiu no ônibus e sentou na última fileira.

tentava inspirar e contar até 10 antes de soltar o ar, como havia visto num vídeo sobre crise de pânico no tiktok.

aos poucos, sua respiração foi voltando ao normal, até que um vendedor ambulante entrou no ônibus e começou a vender suas mercadorias.

capa de celular, alicate de unha e lanternas.

pedro ficou encarando as lanternas sem entender o porquê, até que todas começaram a piscar.

tremendo, sacou o telefone e filmou as luzes.

o ritmo começou a acelerar e seu telefone ficou tão quente que ele quase não conseguia o segurar.

desesperado, pedro levantou, correu até a porta do ônibus e desembestou pela calçada, tropeçando numa lata de lixo.

andava apressadamente pelas ruas, olhando para os lados como se esperasse ser atacado a qualquer momento.

a mera visão dos postes e letreiros iluminados das lojas já era suficiente para deixar suas mãos tremendo.

apesar disso, chegou em casa sem maiores sustos.

sentou à sua poltrona favorita e tomou um longo gole do seu whisky barato.

enquanto sentia a garganta queimar, fechou os olhos, tentando recuperar o controle das suas emoções.

o ritmo das luzes piscando não saia da sua cabeça.

ele havia decorado toda a combinação, como se ela estivesse dentro dele o tempo todo.

gravou um áudio contando tudo e o enviou, junto com o vídeo feito no ônibus, para uma amiga que adorava teorias da conspiração.

foi até o banheiro.

ao apertar o interruptor da luz, nada aconteceu.

então, ele lembrou da noite anterior e trocou a lâmpada.

receoso, apertou o interruptor novamente.

a lâmpada acendeu e ficou estática.

pedro sorriu aliviado.

tomou outro gole de whisky.

e mais um. 

e mais um. 

até ficar com sono e deitar largado na cama.

pedro não viu, mas uma luz se acendeu na sala da sua casa horas depois.

era a tela do seu celular.

sua amiga respondeu e, em sua mensagem, ela dizia:

“isso no vídeo é código morse. significa SUA HORA CHEGOU.”